quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Al Berto (2017)

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Al Berto de Vicente Alves do Ó é uma longa-metragem portuguesa e a mais recente obra do realizador de Quinze Pontos na Alma (2011), Florbela (2012) e O Amor é Lindo... Porque Sim! (2016) agora centrado num período da vida do poeta Al Berto.
Verão de 1975. Al Berto (Ricardo Teixeira) regressa a Sines depois de uma temporada em Bruxelas e ocupa o antigo palacete da família onde passa a viver em comunidade com mais jovens da vila. Numa terra que agora vive a liberdade, Al Berto conhece João Maria (José Pimentão) por quem se apaixona. Num momento em que todos experimentam essa liberdade recentemente alcançada, estará a população à sua volta receptiva a aceitar o amor?
Com argumento também escrito pelo realizador tendo como base acontecimentos da vida do seu irmão João, Al Berto é o tal filme necessário que relata a história dentro da História. Privados de um cinema que transporte o espectador para as pequenas grandes histórias daqueles que compõem um imaginário colectivo - tantas vezes perdido - sobre as figuras maiores da História Portuguesa, este Al Berto entrega ao espectador um pequeno mas intenso relato sobre o poeta regressado a um país perdido nos caminhos de uma liberdade sem rumo. Os instantes iniciais de Al Berto em que o próprio conversa com uma prostituta - numa breve mas brilhante interpretação de Rute Miranda de quem, de imediato, me confesso fã - denunciam aquilo que poderemos - em certa medida - reter da história futura. "Al Berto" (o homem) chega a uma terra que conhece, que foi sua mas que pela força de um destino que agora começa a ser escrito está longe de ser aceite na sua totalidade pela mesma. "Al Berto" experimentou o mundo, a vida, a sua sexualidade, as suas amizades, os seus conhecimentos e até mesmo esse tal futuro já vivido noutros cantos da Europa ainda distante deste Portugal então recentemente descoberto. Desta forma, "Al Berto" é assim uma luz que insiste brilhar num canto escuro, ainda oprimido e onde a liberdade chega ainda com os pequenos grandes traços da ditadura que todos castrou. Brilhar por de mais (ou menos) poderá tornar-se assim no dilema que recusa aceitar mas com o qual se depara numa sociedade que agora pode dizer tudo... sem limites... sem fronteiras... mas que impede o próximo de viver a sua vida com igual liberdade.
Mas, se é a liberdade que serve de condutor para uma história centrada em meados da década de '70 neste tal Portugal recém enamorado pela mesma é, no entanto, o amor que acaba por comandar os destinos de todas as suas personagens. Sedentos de novas experiências e de uma vida que os fizesse alcançar o mundo - ainda que a partir da sua Sines natal -, o então grupo de jovens apaixonava-se pela ideia de poder viver a sua juventude, os seus amores e um ideal de liberdade que os levava à própria concepção de experimentar o amor. Saídos de um regime em que a manifestação de sentimentos era, também ela, mal vista pela sociedade e em que os papéis sociais eram previamente definidos pelas "normas" de então, agora encontram-se num período da sua vida - e da História - que permitia o amor sem barreiras, limites ou imposições pré-concebidas. Assim, se para "Sara" (Raquel Rocha Vieira) este amor parecia ser completo com a presença de "João Maria", ou para "Clara" com a hipótese de ser alguém, existe uma "Leonor" (Gabriela Barros) para quem essa noção de amor mais não é do que uma efeméride que nunca viveu, um "Duarte" (José Leite) que vive num limbo apenas confirmado mais tarde com "Cândida" (Mia Tomé). Mas, no entanto, é sobre a relação entre "João Maria" (José Pimentão) com "Al Berto" (Ricardo Teixeira) que tudo para acontecer e confirmar que o amor vem sempre acompanhado de uma certa tragédia (pessoal) que o impede de ser pleno.
No Portugal de então saído de uma violenta ditadura que acabou por colher a vida de muitos jovens - e outros tantos que tiveram de se transformar em adultos forçados muito repentinamente - "Al Berto" chega a uma vila de certa forma tradicional e onde a ideia de vida (ou de relação) prende-se às velhas normais instituídas como "correctas". Homem encontra mulher, homem casa com mulher. Homem e mulher têm filhos. Todos acabam por, de forma inconsciente, respeitar estas regras sociais que definem o bom comportamento e a "boa família". No entanto, "Al Berto" vai encontrar um "João Maria" por quem se apaixona imediatamente. As breves mas intensas trocas de olhares confirmam não só a imediata empatia entre ambos como uma atracção que se vê consumada com os momentos apaixonados que, mais tarde, a sociedade descobre e tenta reprimir por não serem "normais" esquecendo que no amor não existe a tal normalidade que anos de repressão insistiram em impôr como norma. Surge então no espectador a questão sobre a directa relação entre um amor que se quer normalizado como directa influência de uma liberdade que poderá (?) também ela, ser normalizada ou, ainda por outras palavras, onde difere a relação entre o regime ditatorial que vigorou no país em relação ao ideal de liberdade deste pós-25 de Abril que aparenta querer ser, também ela, autoritária e pouco respeitadora da individualidade de cada um?
É neste deambular de um ideal de liberdade e amor, de experimentação e de redenção que essa esperada liberdade chega, trazendo com ele todo um conjunto de inesperadas responsabilidades, perdas, lamentos e ainda que o amor (ou a sua vivência) compreende o afastamento de uma posse ou de uma certeza de ideal enquanto "relação"... diz-se algures que nem todas as relações sobrevivem a uma guerra... que aqueles dela vindos acabam por regressar enquanto pessoas diferentes. Em Al Berto confirma-se que também a liberdade pode com ela trazer transformações nas pessoas, nos seus sentimentos face ao mundo que anteriormente conheciam e, claro está, revela no âmago de cada um, o tal despertar de algo que desconhecia ou não se sentia capaz de admitir.
Assim, e como momento central de toda esta história, o espectador assiste ao crescer de uma relação afectiva e sentimental entre "Al Berto" e "João Maria" como cresce e se torna natural o amor entre duas pessoas quando livres do preconceito pré-estabelecido pelos demais - e no qual, em boa medida, poderão ter sido educados -, deixando-se levar pelo sentimento, pela cumplicidade, pela entrega mas também pelo ciúme, pela necessidade de posse ou mesmo pela vontade de pertença ao "outro" que surge como uma extensão do "eu". "Al Berto" e "João Maria" amam-se apaixonadamente e Alves do Ó filma-o não só pela sua condição romântica e afectiva mas também carnal que, uma vez mais, se assume uma como directa extensão da outra ou não será este amor sem barreiras a imediata condição de uma liberdade assumida?
Com um dom especial em contar histórias sobre aqueles que pisaram o Portugal anos antes do seu tempo devido - afinal, tal como Al Berto não foi Florbela Espanca um vulto maior do que o país que a recebeu -, Vicente Alves do Ó dinamiza toda esta história - real - com a verve necessária para que o espectador a sinta, a viva e a compreenda como um relato de duas almas apaixonadas que apenas a fatalidade e a incompreensão do tempo e da época poderiam impedir de viver. Abrilhantado com toda uma excelência técnica - da fotografia de Rui Poças que capta a luz e as sombras que emergem o espectador numa certa libertinagem (e não o uso de forma depreciativa) dos loucos anos '70 onde tudo era novidade (a liberdade de novo), ao guarda-roupa que compõe o ambiente, sem esquecer a magnífica (uma vez mais) música de Pedro Janela que confere um certo erotismo e sensualidade aos corpos que se deixam levar pela esperada folia da época - Al Berto é de facto uma história dentro da História à qual os actores conferem a alma que tantas vezes falta às personagens (aqui reais) de uma obra cinematográfica. Aqui não nos encontramos perante personagens inventadas fruto de uma qualquer imaginação que se deixou levar por breves momentos. Aqui o espectador encontra um conjunto de actores que incorporam almas daqueles que pisaram a História - que até a escreveram nas suas respectivas áreas - e cuja memória precisa necessariamente ser preservada na sua integridade. Ricardo Teixeira é brilhante como "Al Berto", o homem para lá do poeta, vertente esta que, no entanto, é uma constante na dinamização e presença da sua história. O homem que veio para viver a sua terra mas acabou por deixar-se ele próprio viver, que tentou reatar os laços com o seu espaço e experimentar a dinâmica de uma vida comunitária onde as amizades e as cumplicidades transformam um grupo de pessoas com quem privou na inesperada família com quem tudo partilhou. Intenso, vibrante e com um olhar penetrante, Teixeira assume neste seu primeiro - de muitos futuros - desempenhos cinematográficos a dinâmica necessária para que o espectador se recorde dele.
Al Berto tem ainda um conjunto de notáveis e reconhecidos actores como Elsa Valentim ou Rita Loureiro - como mãe do próprio realizador - mas são, no entanto, os mais jovens actores que se destacam de forma imediata nesta longa-metragem. Do "Zé" de Duarte Grilo que nunca deixou a terra e que agora também a quer viver ao máximo a um trio feminino composto por Ana Vilela da Costa - cuja "Clara" sonha em conhecer o mundo -, Gabriela Barros - cuja "Leonor" sabe não ter encontrado o mundo - e Raquel Rocha Vieira - cuja "Sara" compreende ter perdido o mundo -, a José Leite com o seu "pacificador" "Duarte", sem esquecer o excêntrico "Maria Belga" de João Villas-Boas como o elemento trágico e cómico pela sua capacidade de dar alma a alguém que deixou esse mundo para chegar a uma terra onde o futuro parece insistir em não chegar e ainda uma (muito) intensa Rute Miranda que, tal como "Al Berto", cedo compreende que está numa terra e num local que são pequenos demais para toda a sua alma é, no entanto, um extraordinário e emotivo José Pimentão que com o seu "João Maria" compõe aquela que é eventualmente a alma mais atormentada desta história. De relações aparentemente cortadas com um pai - Carlos Oliveira - que viveu uma vida dupla com outra mulher - Rita Loureiro - que não a sua mãe, afastado sentimentalmente de "Sara", aquela que até então se assumia como a sua cúmplice sentimental e agora apaixonado por um "Al Berto" recentemente chegado à terra, é através dos seus olhos que o espectador conhece não só o desejo como a mágoa, o amor como também o ódio, o carnal mas igualmente o lado sentimental e finalmente a compreensão de que para lá desse sentimento seria a perda que iria comandar o seu destino deixando por concretizar aquele que - percebemos nós - seria eternamente o seu grande amor.
Fluído e inteligente, erótico mas emocional, o Al Berto de Vicente Alves do Ó é para lá da história de um momento da vida de um poeta, uma homenagem ao amor e à liberdade, à sua íntima relação e à extrema necessidade do espectador em compreender que essa liberdade - para "mim" - não começa (ou termina) com a "sua" chegada mas sim com a confirmação de uma vida vivida no total respeito dos próprios sentimentos e afastado do peso do julgamento alheio e - para o "outro" - na compreensão de que a individualidade de cada um se afirma com igual respeito que lhe é merecido, devido e, como sua lógica conclusão, conquistado.
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" (...) someday when you're lonely,
Your heart will break as mine did (...)"
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10 / 10
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