sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Coração Negro (2017)

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Coração Negro de Rosa Coutinho Cabral é uma longa-metragem portuguesa presente na competição oficial do Caminhos do Cinema Português que termina já no próximo dia 3 de Dezembro e a mais recente obra da realizadora de Lavado em Lágrimas (2006).
Ela (Maria Galhardo) chega aos Açores para se reencontrar com o marido (João Cabral). Aquilo que se esperava como um reencontro ansioso, cedo se transforma numa indiferença entre o tempo, o espaço e o casal impossibilitado de comunicar dividido por uma aparente perda.
A realizadora em colaboração com Tiago Melo Bento escreve o argumento desta longa-metragem tendo não só o cenário natural de São Jorge como pano de fundo como também uma história que opõe vidas, destinos e percursos. Para lá da mudança do par protagonista para um território diferente, está também implícita na mesma a escolha mais ou menos voluntária para um novo espaço que os possa fazer evadir de uma perda recente. Aliás, é o sentimento de perda que domina toda esta narrativa, opondo os dois na forma como encaram o espaço como principalmente na própria maneira de encararem aquele que, noutros tempos, tinha constituído uma parte do seu próprio mundo.
De distantes até mesmo a indiferentes - mais notório na postura d'"Ela" face a "Ele" -, Coração Negro apresenta os sinais desta ruptura no próprio espaço ao qual agora chamam da sua casa. De uma relação em recuperação a um lar em obras e no qual parece existir um constante desconforto permanece, durante uma boa parte do tempo, a dúvida sobre os motivos que os levaram àquele momento das suas vidas. Poderá este "coração" ser realmente negro pela perda ou, por sua vez, pela insuficiência de a ultrapassar dirigindo-se ambos para caminhos opostos que não estão, no entanto, ainda dispostos a percorrer? Existirá algo mais para lá desta mudança ou apenas se encontram numa posição de adiamento do seu futuro? Reinam os silêncios numa relação que parece ser, então, inexistente reflectido até na escassa troca de palavras que trocam e onde permanece uma negatividade latente... o vazio, o nada, a ruína, a perda, o sofrimento. Tudo dependente de uma "escolha" - entre a vida e a morte?! - referida por ela que tudo indica - e mais pistas surgirão em Coração Negro - prender-se com a perda - voluntária ou não nunca é claro - de um filho. Morte (?) essa que os separa, que os distancia e que se transforma na montanha que não se vê mas que se sente, tal como aquela que, na ilha, não consegue ver da sua janela mas que sabe ser uma presença.
A acompanhar este sentimento de impotência, de isolamento, de perda e até de morte vem um desespero vivido em silêncio. Um silêncio que rebenta quando se vive com a ideia da felicidade alheia incapaz de compreender um sofrimento escondido, anónimo e silencioso que se propaga como um vírus e para o qual é encontrada a analogia perfeita quando se refere que (também) "as árvores gritam quando são cortadas". Persistirá (para ambos) a dor... a dor que o espectador reconhece, sobre a qual tira as suas ilações que, no entanto, nunca chegam a ser confirmadas.
Tendo como ponto de partida a curta-metragem São Miguel Arcanjo nº5 (2014), Coração Negro é uma reflexão sobre a dor bem como sobre as suas directas consequências... O silêncio, o isolamento, a perda de identidade e até mesmo as relações sem reconciliação que dela advêm. No fundo, a grande questão que esta longa-metragem levanta resume-se a uma que não é tão simples quanto aparenta... Até que ponto conseguimos sobreviver a uma dor maior? Até que ponto sairá o indivíduo ileso de uma perda incomparável a qualquer outro sentimento?
Com um passo muito próprio e duas (in)tensas interpretações que lhe dão corpo e alma (na sua ausência), Coração Negro transforma a melancólica paisagem natural Açoriana como o último reduto (ou morada) possível para aqueles que encontram no isolamento a única resposta possível para a sua dor. Negro - como a terra ou como as pedras vulcânicas -, é naquele espaço que se tenta reencontrar uma vida onde ela já não vive. Como sobreviver à desgraça? Como sobreviver à perda?
João Cabral e Maria Galhardo complementam-se como um só na medida em que representam a perda de forma diferente. Se ela parece ser o fundo de um túnel silenciosamente desesperado e incapacitado de encontrar essa nova vida esperada, ele é o seu directo oposto pretendendo (sobre)viver à ruína sendo que, no entanto, espera encontrar nela o alento que tarda e nunca chega. Tudo o demais é invisível e apenas serve de adorno a vidas que eles esperam. Assim, e como dois fantasmas que percorrem um incerto purgatório, ambos deambulam em comum incapazes de compreender que a sua prisão a céu aberto os impossibilita de continuar e esperar por algo que já não lhes pertence.
Metafórico e sólido, Coração Negro assume-se como uma longa-metragem onde o argumento funciona como um elemento de ligação entre dois momentos distintos dos quais, no entanto, apenas um se conhecer com certeza assim como de duas fortes interpretações de Cabral e Galhardo que encarnam não só a solidão - ainda que vivida de forma diferente - mas principalmente a dor... a dor proveniente de uma perda irreparável.
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7 / 10
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